terça-feira, fevereiro 28, 2006

Duas Vontades

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Quantas vezes não somos salvos, em pleno hipnotismo da contemplação da ravina, pelo nosso duplo, que se agarra com unhas e dentes ao que fazemos menção de deixar de vez. Mas não consigo impedir-me de pensar que, se os papéis estivessem invertidos e fosse a Sombra a querer dar o salto, não haveria possibilidade de evitar o desfecho fatal, tal é a superioridade da constância dela sobre a nossa.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

A Palavra Nega a Imagem

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«Sonhos Sem Tempo». O tempo que se deixou de ter para os tornar realidade, ou o que nunca existiu nem existirá, condenando à fantasia o Desejo. À bipartição de "sonhar", em "errar durante o sono" e como "querer", cabe o papel de algoz da esperança sugerida pelo verde e pelo nu. Não é só no deserto que a Palavra ganha uma força esmagadora.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Da Latência

O termo "sobrevivente" tanto refere a um desastre, ao Pretérito, como à actualidade, ao facto de cada dia nos encontrarmos, surpreendentemente, vivos. Demonstração exaustiva do triste conceito em que temos a vida de todos os dias. Vemos, com inteira inteligibilidade, uma ameaça, não em cada passo que damos, como, muito mais alterante da tranquilidade ideal, em cada elemento exterior que nos espreita. Procissão de desconfianças nem sequer neutralizadas por qualquer mudança de direcção, apontada à própria origem dos temores. Pelo que esta curiosa obra de Nina, intitulada, justamente, com a palavra que se vem abordando, significa tanto a ultrapassagem dos obstáculos reais, como, mais profundamente, a concretização da sobrevivência a si próprio.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Leitura da Nudez, Nudez da Leitura

 
Muito se tem dito acerca da nudez exibida por quem escreve, quando não há acto em que a escolha das roupagens seja mais cuidadoso e elaborado. Ao invés, é na leitura que nos desnudamos verdadeiramente. Dirão que não dos preconceitos, mas isso não é mais cobertura do que a pele, na medida que só por retórica podemos falar em despirmo-nos deles. Em compensação, no acto de ler está cada um desprovidoda necessidade de compor uma imagem, pois não é comum olhar com uma das vistas para um livro e com a outra para um espelho. E quando - como tantas vezes acontece - um volume leva a conhecermo-nos melhor, é o nosso ser que se revela, numa nudez que, nas mais das vezes permanece oculta, vedada ao nosso conhecimento. Posted by Picasa

terça-feira, fevereiro 21, 2006

A Verdadeira Falta


Dizem que existência da Esperança subsistirá quando mais nada haja. Mas ninguém fala de mim que sou condição desse brilharete dela. Ainda por cima me caluniam, dizendo que quem comigo está caminha para o desespero, enquanto que à manhosa atribuem a chave do Èxito. Ela é bela e joga com o desejo, mas eu sou honesta e estou sempre ao lado. E no entanto, a maior falta não é o não reconhecimento do que eu tenho para dar. É minha, porque, tantas vezes, não sei por que razão vivo. Sou a Espera, como me moldou Eric Fischl.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Heterodoxias

 
A maneira mais difícil para chegar a um resultado afasta, muitas vezes, mais do que o estabelecimento de metas diferentes e, por maioria de razão, do que o falhanço de um objectivo determinado. Finalidades diversas são, tendencialmente, relegadas para a esfera de liberdade de cada um e como bandeira dela arvoradas. Derrotas, nunca mereceram mais do que desprezo, ou as reacções que dele comungam, em pólos opostos, como a marginalização ou a pena. Mas uma via diferente das dos demais, obtendo sucesso, é tida como afronta à comunidade, suficientemente impune para gerar ódio. E com aversões assim invisivelmente geradas se perde de vista o que era almejado e se deixa de julgar a legitimidade desse fim. Posted by Picasa

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Contraproducente

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As mais frustrantes de entre as propagandas serão porventura aquelas que trarão como consequência o triunfo da mensagem oposta à que se desejava fazer passar. No caso vertente procurar-se-ia, à partida, demonstrar que a má aplicação do tempo não deixará grande margem, face à eficiência da presunçosa da imagem. Mas uma sugestão mais fácil pode prevalecer - a de que a universalidade do alcance e fatalidade do encontro com a Dama demonstra que não vale a pena pôr de lado a futilidade, pelo contrário, há que gozar o pouco tempo que é dado a cada um. Toda a diferença está no conceito de "aproveitamento". Que demasiadas vezes leva a que se ignore o de proveito.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

A Irradiação Putativa


Sempre me pareceu que o constante questionar da identidade da fonte era questão falsa, comparada com a do apuramento de quem apresentava possibilidade de absorção. Porque as disponibilidades costumam retratar-se como o inverso do que sejam. E a procura das seguranças trava qualquer chuva de fecundidade. É A INSPIRAÇÃO, o mito dos desasados e a traidora dos experimentados. Que todos querem ver nas belas paisagens, ou nos traços perfeitos, não levando em conta a predisposição do que passeia o olhar, para quem essa certeza é tão agradável como uma notificação oficial para liquidar uma dívida.

domingo, fevereiro 12, 2006

A Indistinção dos Sons

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Há muito que me obceca a obra de Svetlana Bakushina, cuja juventude encontrou o contraponto numa torturada profundidade. Neste exemplo, «Melodia Para Uma Flauta», não somos levados a ligar a tentativa de auscultação da Música da Terra ao ameaçador começo da indistinção das formas humanas? Como os orifícios do instrumento, aludidos no título, não ameaçam a subjugação a que obriga o posicionamento cimeiro e a vigilância de outros furos? Será resposta notar que a intranquilidade humana retira de uma sequência musical o prestígio e confiança da harmonia. Tanto quanto permite o império da máxima «O Reino dos Sons não é deste mundo das imagens».

sábado, fevereiro 11, 2006

Combinação Perfeita

Ernst Junger viu muito certeiramente, ao afirmar que gatos e livros são duas coisas que vão muito bem uma com a outra. Lamento, porém, que Fialho tenha pegado no que menos bom se aponta aos felinos, para metaforizar o que de pior têm os homens, mesmo os de génio, que é a maledicência, por vezes embalada como «Crítica». Poder-se-ia antes titular um volume, com o enunciado da miadeira condição em virtude da agilidade de espírito, comparável à do físico dos bichanos. E como têm fama de serem possessivos, que lhes ficasse o proveito, em marcas de propriedade como este ex-libris:

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

O Trampolim das Origens


Um amador de café que se recusa, com eu, a adocicá-lo, atitude que extrapolo igualmente para a Vida, tende a pensar como, apesar de geralmente ver a sua descoberta atribuída aos árabes, o precioso líquido negro - nomenclatura que lhe calha muito melhor do que ao petróleo - ter o seu rasto mais remoto na Etiópia do Século VII da nossa era. E penso como um país afamado pela escassez, poderia ter usado um tal excitante, como contrapartida, ou tónico para prosseguir, por sobre a adversidade. Por muitos protestos que desperte, dos nutricionistas, quer o afecto que nele consiga encontrar o que Obelix via num javali recheado de narcóticos que visavam adormecê-lo: um gostinho e um cheirinho de acordar um morto!

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Chover no Molhado

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Há citações para todos os gostos, a favor e contra, a propósito do emprego das ditas. Não me tocam, particularmente, as que insistem nas simbioses espirituais, embora as creia verdadeiras, ou as que as atribuem às limitações dos que a elas recorrem, apesar de lhes reconhecer a veraracidade, em muitos casos. A minha favorita é de Montaigne: «Cito para me exprimir melhor». É manifestação de modéstia sem a sua ostentação. Mas encerra também o segredo de polichinelo que torna citar uma arte: o solitário momento em que o Autor se guinda ao invejável estatuto de Leitor e em que o Leitor se consegue alcandorar ao invejado nível de Autor.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Ideias Feitas


Em que medida a conformação às formas a que estamos habituados pode limitar o reconhecimento da realidade? Difícil seria dizer, à primeira vista, que aquilo que aqui está é a imagem de uma aranha. Muitos seriam tentados a ver no corpo dela a reprodução de uma máscara elaborada, ou de qualquer outro acessório festivo. Mas a desonestidade interior começaria quando, com um pequeno conhecimento acrescido, se tentasse negar a condição de aracnídeo, por, ao contrário de outras mais conhecidas manifestações desse grupo animal, não caçar com o auxílio da teia, mas antes por um processo químico que atrai as vítimas. Fora da política, nem sempre o que parece é: eis Ordgarius Magnificus.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

A Palidez dum Triunfo

Passo os olhos por uma colectânea de pensamentos sobre a Liberdade e encontro este, de Abe Kobo:
«A liberdade não consiste só em fazermos a nossa vontade; por vezes consiste também em lhe desobedecer».
Máxima fecunda, por reconhecer que a tirania dos desejos imediatos e terrenos é tão potencialmente escravizadora como outra qualquer. E por muito que algumas correntes psicologistas teimem em negar a autonomia da vontade, dando-a como mera corrente de transmissão de peripécias anteriores, nada se consegue cabalmente explicar sem ela. Nem se poderia falar nas doenças da vontade, pois enfermo não pode estar o que inexiste. Ouspenski cortou com Gurdjeff, em grande parte, por achar que o seu mestre não dava relevo bastante a essa entidade e não a explicava suficientemente. Mas todas as denegações ou mitigações do reduto e da fonte do querer têm, se não como objectivo, pelo menos como consequência perversa, a eliminação da culpa e... da liberdade.
Mas claro, como diz o povo para os constrangimentos de atitude na vida social, «à vontade não é o mesmo qque à vontadinha». E o triunfo maior pode bem ter cores pouco vivas - ser a ultrapassagem de instintos.

domingo, fevereiro 05, 2006

Contrafacção do Temperamento

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«O Temperamento Fleumático».